Pimpom é uma máscara de papelão
- evandro melo
- 7 de jan. de 2024
- 5 min de leitura

Estou em uma fase em que já não escolho a trilha sonora. Bom, até escolho, mas não necessariamente a meu gosto, preciso agradar uma certa pessoínha. Bom ter Spotify que me ajuda a ter acesso a um universo de músicas rapidamente.
Ultimamente uma das trilhas mais tocadas tem sido ‘Cantigas de roda e canções infantis de Ana Santos’.
A maioria das canções são bastante conhecidas. Tem 'Alecrim dourado', 'Baratinha', 'Sapo não lava o pé’. Dentre elas, uma que ao menos para mim, era desconhecida, a Pimpom.
A musiquinha é assim:
Pimpom é um boneco, feito de papelão, que lava o carinha com água e sabão.
Penteia o cabelo com pente de marfim. E se dá uns puxões, não chora assim assim.
Pimpom toma a sua sopa e não suja o babador, pois come com cuidado o que é feito com amor.
Apenas as estrelas, começam a brilhar, Pimpom vai para a cama, dormir e descansar.
Como tenho ouvido em loop quase infinito, chega uma hora em que a letra entra na cabeça, e cabeça de psicólogo sabe como é, presta atenção, analisa e problematiza.
A música faz menção a Pimpom, um boneco de papelão obediente. Mas não obediente em um nível legal, mas em um nível idealizado.
O boneco Pimpom, lava o rostinho com água e com sabão. Até aqui, ótimo, higiene é bom, necessário e ter suporte lúdico para as fases porquinhas das crianças é bem vindo.
Mas já na sequencia fica, a meu ver, problemático. A canção diz que Pimpom penteia o cabelo com pente de marfim, e se dá uns puxões, não chora assim assim. Pimpom sente os puxões, dói, mas não chora, não se queixa. Por quê?
Qual o problema com o choro?
Na verdade não há. Tem é muita palavra não dita dentro de um choro, muito sentimento incompreendido, que se comunica em forma de lágrimas e lamento.
Ainda hoje, há muitas situações de desestímulo ao chorar. Seja com broncas - "Para de chorar agora!" - seja com chacotas - “chorar é coisa de menininha” - e até aquele presenteador perverso - “Quer chorar, vou te dar um motivo para chorar”. Já ouviu algum tipo desse?
E o efeito que isso causa é ter um bando de adultos que não sabe lidar com o próprio sofrimento, que não sabe chorar. E por não saber chorar, vai sofrendo calado, vai somatizando, ou vai buscar refúgio em vícios como trabalho, álcool, drogas.
Há um médico/escritor húngaro-canadense chamado Gabor Maté, que escreve muito sobre a relação entre pais e filhos. Ele comenta algo interessante. No momento em que uma criança está mais vulnerável - chorando - é o momento em que os cuidadores devem acolhê-la e assim ensinar na prática o significado de afeto e de lugar seguro.
Seguindo, o boneco toma sopa e nem suja o babador, pois come com cuidado o que lhe é feito com amor. Que amor, não?! Não!
Uma criança pequena se suja. E se sujar, faz bem, já dizia o comercial de sabão em pó. Pimpom, porém, nem precisaria de babador, pois não se suja. E reparem no 'peso amoroso' que vem a seguir, ele tem cuidado com o que recebe com amor.
É um bom exemplo de chantagem de adultos sobre crianças. - “Olha, eu dou tanto amor e você faz isso…” - Quantas vezes você não ouviu algo assim? Aquela pessoa importante em sua vida, que chega com doçura e te joga um peso sobre as costas na forma de chantagem emocional. Como diz a música de Chico Cesar “Deus me livre da maldade de gente boa e da bondade da pessoa ruim”.
Mas se é feito com amor, não há cobrança. O amor nada espera em troca, ou amor não é. Pode ser um ato narcísico de dar ao outro esperando o retorno satisfatório.
A canção finaliza com "Apenas as estrelas, começam a brilhar, Pimpom vai para a cama, dormir e descansar.” Pimpom, no auge da sua primeira infância, sabe que se anoiteceu, é hora de dormir. E esse processo deve ser feito docilmente, sem lutas contra o sono, sem choro, sem chamego.
Bom, vários problemas aqui. Mas sabe quem perde mesmo com uma criatura idealizada dessas? Os pais, os cuidadores.
Eu bem sei o trabalhão que dá, fazer uma criança que está se descobrindo, dormir. A vontade de ficar desperto é maior, mas o cansaço vem, e junto vem choro, manhas. Eu aprendo muito nesse processo, sobre minha filha e sobre mim.
Uma musiquinha simples, de quatro estrofes, parecendo inofensiva, mas que carrega muitos símbolos.
Uma é a idealização, ou, projeção. Para Freud, projeção é um mecanismo de defesa do ego. Sabe aquilo que você não lida bem consigo mesmo e aí projeta no outro. Aquele defeitinho que a pessoa não adimite ter, e acaba apontando nos outros?
Aqui há uma projeção da criança ideal, ou melhor, idealizada. Criança essa que não chora, não se suja e dorme sem dar trabalho. Só poderia ser de papelão.
Alias, esse é outro aspecto interessante de se observar. O fato de Pimpom ser um boneco de papelão. Sabe o que também é feito de papelão? As máscaras.
Na Psicologia Analítica, Jung chama esse mecanismo de Persona.
Persona é um complexo funcional que surge por razões de adaptação ou necessária comodidade. Uma máscara da psique coletiva, que aparenta individualidade.
Explicando melhor, para se viver em sociedade, por vezes entendemos ser necessário nos adaptarmos ao meio em que estamos, adotando personas que de início nos dão a impressão de estarmos praticando nossa própria indivudualidade, mas que de fato estamos apenas nos adaptando ao grupo. E o fazemos por comodidade, por medo, por desconhecimento, por querermos nos adaptar ao meio em que estamos.
Temos vários exemplos, como o jovem rebelde, que começa a fumar e beber, para ser aceito em uma tribo. Persona!
Adultos que gastam o que não tem, para comprar o que não precisam e impressionar a quem nem gostam. Persona!
Pessoas que se maquiam e usam filtro digital para fazer post no Instagram. Persona!
Aquele sujeito bonzinho, que só diz sim para agradar todo mundo. Persona!
E por aí vai.
Em alguns momentos, não vou negar, é até útil. Desde que não se fique preso ao personagem, perdendo assim, sua individualidade (não confundir com individualismo).
Há, ainda, casos em que a máscara nos é imposta. O moralismo religioso, por exemplo, é um meio em que se obriga ao uso de máscaras para fugir de julgamentos. O machismo, outro. Modas, redes sociais, classe social, e por aí vai.
Aqui na canção de Pimpom, nota-se essa máscara sendo construída e oferecida como algo bom. Para quem? Para crianças que se sujam, que choram, que não dormem na hora em que querem os adultos.
E, infelizmente, há muitos adultos que tiveram sua infância ‘mascarada’ e continuam esse ciclo perverso de impôr personas aos seus pequenos.
Agora uma boa notícia: máscaras de papelão, podem ser rasgadas e jogadas fora. Algumas dessas é até fácil, basta só um pouquinho de coragem, pouca coisa. Outras máscaras já estão há tempos demais coladas no rosto, essas dão um pouco mais de trabalho e pode ser necessário apoio. Aqui a terapia psicológica pode te ajudar.
E aí? Bora se livrar de algumas máscaras?
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Ev Melo




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