O conto da raposa e da galinha
- evandro melo
- 9 de out. de 2024
- 4 min de leitura
Todas as raposas são iguais. Era o que se dizia na floresta, e se todos diziam, uai, era verdade. E raposas fazem o que nasceram para fazer. Caçar. Usar toda sua inteligência e sagacidade para, furtivamente, caçar. Qualquer animalzinho que se mexa, é alvo da caça. Mas melhor ainda quando há galinheiros. Comida fácil.
Raposas adoram caçar, mesmo que em cercados pequenos, com presas mais fáceis. Era o que todas faziam naquela floresta.
Mas havia uma, chamada Mel-do-Dia, que não levava jeito para aquilo. Aquilo o que? Bem, aquilo que faziam com que todas raposas daquela floresta fossem iguais. Mel-do-Dia sabia, ainda que não sabendo como, nem o que exatamente, que não era assim.
E sofria um bocado. Primeiro por que queria ser igual, precisava ser igual. Era cobrada pelas maiores e pela liderança. “Vem cá que te ensino a ser o que você é, raposinha, tome jeito”. Ouvia a bronca quando titubeava.
Inteligência tinha, isso ela não duvidada, mas como usar?! Aiai, isso já eram outros quinhentos.
E lá ia Mel-do-Dia, tentando ser igual. Bolava planos, fazia poses e caras, e em sua cabeça, devorava dezenas de galinhas, que caiam desmaiadas só de sentir sua presença. Mas ao entrar no galinheiro, quem quase desmaiava era ela. As galinhas gritavam, alardeavam feito sirene, a luz acendia, e Mel-do-Dia corria se esconder, apavorada.
Era uma angústia danada. Mel-do-Dia então, tomou uma decisão. Se não dava para ser igual, seria diferente de todas as outras. E ponto.
Bolou seu plano, e nesse plano, ao invés de matar galinhas, iria roubar seus ovos. Estufou o peito, fez caras e bocas, e foi. Mas que desastre. Os ovos já haviam sido coletados pelo fazendeiro, as galinhas a perceberam, começaram a gritar e lá foi Mel-do-Dia se esconder.
Uma galinha em especial, viu toda a cena com curiosidade, que convenhamos, não era típico das galinhas. E por sua curiosidade, assistiu toda a cena até onde a raposinha se escondeu, para não ser pega pelo fazendeiro.
Passada a confusão, a galinha foi até o esconderijo. “Oi”, disse ela, e continuou:
- Eu tenho te acompanhado todos esses dias. Você é meio atrapalhada né?!
- Quem é você? Melhor sair correndo, senão te caço. Sou furiosa.
- CóCócó, que engraçada. Não consegue nem disfarçar a tremedeira. Me diz, qual seu nome?
- Mel-do-Dia, porque sou da cor do mel, e prefiro o dia do que a escuridão da noite. E o seu?
- É Mile, porque, bem, porque sim.
E iniciou-se uma verdadeira amizade. Que coisa boa.
Mas o problema continuava. Mel-do-Dia era pressionada em sua turma, e tinha que mostrar serviço. E mesmo tendo afeto pela galinha, lá ia ela tentar roubar ovos.
- Mas de novo essa trapalhada. Não se cansa não? – Perguntou Mile, a surpreendendo.
- Cansar? Ô se me canso. Mas o que vou fazer? – Disse contrariada, e continuou:
- Já tentei ser igual às outras, mas não. Não matarei outros bichos. Sou diferente delas.
- Diferente do que? Para mim, tá parecendo a mesma porcaria. – Mile era danadinha com as palavras.
- Sou diferente sim, não me provoque. Não quero ser igual a elas, não sou, não sou, mesmo.
- Pois pra mim, tanto esforço em ser diferente, tá te fazendo ser igual. – Finalizou Mile.
Aquelas palavras atingiram Mel-do-Dia como um golpe de travesseiro de taboa. Pesado, mas macio.
Baixou a cabeça, encolheu o rabinho entre as patas, e foi embora, pensativa.
Na manhã seguinte, Mel-do-Dia voltou ao galinheiro.
- Que cara é essa? Parece que passou a noite com as corujas. – Disse Mile.
- Pois é, não dormi nadinha. Fiquei aqui pensando no que me disse. Se não sei ser igual, nem diferente. Não sei ser nada. – Respondeu com a voz embargada.
- Pois essa é a questão. Por que tanto esforço em ser igual ou diferente do que você não gosta?
Mile nem esperou resposta, e continuou.
- Tente ser igual a você mesma. Que tal? – Arrematou o raciocínio.
- Bem, é que... Passei tanto tempo nesse jogo, que nem sei bem quem sou eu. – Respondeu Mel-do-Dia.
- Pois então, descubra. Isso vale o esforço. – Finalizou a galinha sabida.
Mel-do-dia continuou a frequentar o galinheiro para se encontrar com Mile. Passavam horas conversando, e o velho problema, ainda que permanecesse, já não causava tanto medo na raposinha.
Até que em uma dessas conversas, uma ideia luminosa pousou na cabeça de Mel-do-Dia.
- Ei Mile. – Começou a raposa. - Botar ovo dói? Digo, te faz sofrer?
- Bem, não. As vezes dói um pouco, mas acaba saindo. É até legal. – Respondeu Mile.
- E o que você faz com os ovos?
- Ah, quase sempre, nada. O fazendeiro vem e pega tudo. Por que esse interesse todo?
- Bom, será que se você me der um ou dois ovos, de vez em quando, ele sentirá falta?
Mile fez cara de quem compreendeu o plano.
- Que nada, o bicho mal sabe contar. Mas eu quero uma coisa em troca!
- O que?
- Me traga histórias, todas que puder, da forma como for. Gosto muito de ouvir você contar histórias.
- Temos um acordo. – Disse a raposinha feliz.
E assim, se iniciava uma grande parceria. Mel-do-Dia levava histórias, Mile lhe dava ovos. Lá na floresta, ninguém parecia entender bem o milagre da raposinha.
E falando em milagre, teve até um dia, que a prosa estava tão boa, que as duas se esqueceram da hora, e lá vinha o fazendeiro. Mile até tinha se esquecido de botar o ovo do dia. Foi então, na pressa, tentar botar um.
Mel-do-Dia resolveu a ajudar, pegou a amiga no colo e lhe abraçou, apertando com força mas também delicadeza.
As duas riam, com medo, com pressa, e com muita graça também.
E então veio o ovo. Opa, um não, naquele dia, Mile botou dois ovos. Vai ver que a alegria até multiplicava ovos.

Texto e arte por Ev Melo.




Comentários